Álvaro Macedo

Para espairecer com literatura, músicas, dicas…

Freudiando

Não agüento mais meus recalques. Já não vejo o que ocorre, já não ouço o que ocorre e essa invisibilidade dos detalhes deforma o sentido do todo. Apelo para uma regressão sem sentido, achando que o pranto que um dia resolveu meus pequenos problemas poderá libertar-me dessa prisão de mim mesmo. Desesperado, afasto de mim desejos inconfessáveis, por meio de formações reativas, onde parto para ações absurdamente opostas ao desejo original, escondendo de mim aquilo que me dói admitir. Tento racionalizar minhas atitudes, encontrando explicações convincentes e aceitáveis para justificar meus estados deformados de inconsciência. Não, não é uma simples mentira, não. Simplesmente não estou consciente das deformações de meus pensamentos. A luta continua inglória. Projeto para longe de mim essas coisas indesejáveis, incômodas e espero que outro tome conta delas. Tento reprimi-las, busco esquecê-las, nem que seja à força. Isolo-as ao ponto de acreditar que não são mais minhas. Quando não dá mais e elas se tornam muito aversivas, tento sublimá-las de modo que todos as aceitem. De tanta vontade de esmurrar o mundo, tornei-me boxeador. Cheguei a partir para a negação, mas a simples mentira não convencia a ninguém, quanto mais a mim. Desloquei o foco de meus problemas e meti o pé no pobre do meu cachorrinho, que também se chama Freud (desculpe-me, Sig; é admiração por você e eu gosto tanto dele). Assustado com tanta ameaça que minhas próprias atitudes, pensamentos e desejo me traziam, procurei me esconder, identificando-me com grupos grandes, escondendo-me no anonimato. Mas eles continuavam visíveis por mim. Por mim e pelo superego (terrível fantasma de meus momentos de autocobrança). Criei calosidades nos dedos de tanto bater na madeira, para “isolar” todos esses males, mas a anulação não surtia efeito. Qual o quê! Nada resolvia. Partia para amigos que, idealizados por mim, julgava capazes de tudo resolver. Tomei inúmeros sorvetes, tentando substituir a fonte principal de meus desejos. Expiei todos meus erros, para exorcizar-me de meus demônios interiores. Separei bons do maus, mas a cisão nem sempre era possível, tamanha a intimidade que muitas vezes havia entre eles. Joguei tudo isso no meu terapeuta, que rejeitou de pronto essa transferência, dizendo que a única transferência que ele aceitava era da minha conta bancária para a dele, no justo valor acordado e, a todo custo, tentou contratransferir tudo que lhe havia passado. Fantasiei situações em que meus desejos eram resolvidos, procurei aplicar onde eu era bom para compensar essa minha mediocridade escondida, somatizei meus conflitos numa conversão maldita. Achei que não tinha jeito e entrei em total resistência para o meu terapeuta. Por que mexer em caixa de marimbondos? Vamos deixar lá, bem escondidinhos, todos esses traumas. Afinal, remover as cascas de cebolas sempre nos faz chorar.
Perdoem, por essa minha verborragia, fruto de um superego destraído, de um id cheio de desejos incontrolados e um ego que nunca foi um bom gestor.

quinta-feira, 07.julho.2011 Posted by | Uncategorized | Deixe um comentário

Constatação

São 24h do dia 09.07.2010. Hoje, Iveti e eu comemoraremos 33 anos de casados. Ela está ou estava dormindo. Quer dizer, continua a dormir. Mas, exatamente às 00h00 fui lá e lhe dei um beijo e disse: “33 anos de casados! Muito obrigado!” E hoje, começaremos a embalar nossos pertences domiciliares para realizar nossa 6a. mudança de endereço. Alguns dizem que é um pouco de loucura. Outros dizem que não sentem nem um pouco de inveja de nós. Deveriam. Será um dia diferente, com novo agito. Sairemos da rotina. Aliás, já estamos fora dela há vários dias. Selecionando coisas que irão para a casa que alugamos, outras que irão para o sítio do tio da Iveti, o Swami, outras que irão, ou já foram, para a rua. Isso porque sairemos de uma casa de 350 m2 e iremos para uma de uns 100 m2. É que iremos construir num condomínio fechado e precisamos vender a casa antiga, para pagar as despesas com a construção. Nossa vida foi muito boa nessa casa. Nossos filhos cresceram aqui. Escrevi um livro (que está aí no blog: o Entre Outras Coisas) e plantei 22 árvores pessoalmente. Poderia dizer que estou realizado, mas depois que a Rachel de Queiroz disse que só se sente realizado o homem cuja medida é muito pequena, não posso nem pensar nessa hipótese. Não saímos com a sensação de perda, não. Nem com tristeza. Como disse a Iveti, a decisão foi nossa e iremos para algo muito bom, depois que construir a nova casa. E tivemos a sorte de encontrar uma casa para alugar novinha, novinha. Seremos os primeiros moradores. Queremos deixar na casa que entregaremos, ainda como disse a Iveti (ô menina sabida, nos seus 60 anos), uma energia muito boa, para que os novos proprietários encontrem aqui a mesma felicidade que encontramos ou construímos com a ajuda de Deus e muita gente boa. 33 anos de casados, um filho com 31 (fez na semana passada), também casado com uma menina sensacional, o que aumentou uma filha, um filho com 27 anos que mora em São Paulo e namora com outra menina sensacional, mais uma filha, e a filha que fará 18 anos em agosto. Mesmo que não possa arriscar dizer que sou realizado, posso dizer, sem medo, que sou, ou somos, muito felilzes. Grande abraço a todos. E deixe-me dormir que amanhã o dia vai ser de pura energia (consumida).
09 de julho de 2010.

sexta-feira, 09.julho.2010 Posted by | Uncategorized | 4 Comentários

A infinda história de Mary Blue e Red Rose

De muito longe vinham elas. Cansadas de tanto caminhar? Vai saber. Ponto a ponto vinham andando juntas, sem se falarem, só a se observarem.

— Puxa vida, menina. Não aguentava mais esse seu mutismo.

— E eu, então? Pensava cá comigo mesma: “Nunca vi ninguém tão calada”.

— É mesmo. Você tem razão. Não posso acusá-la de nada que eu não tenha feito também.

— Sabe, uma coisa que sempre quis lhe falar foi: “Como você é linda, com esse seu azul modo de ser!” Qual seu nome?

— Ando com um certo problema de identidade, mas pode me chamar de Mary Blue. E você, como se chama?

— Red Rose.

— Muito adequado para esse seu tom de vermelho.

— Obrigada. Gozado! Eu tinha tanto para lhe falar ao longo de todo esse tempo e, de repente, não sai nada. Por que será?

— Talvez seja pelo fato de que sempre estivemos juntas. Tudo o que uma viu a outra viu também.

Red Rose pensou, refletiu, alongou-se e disse:

— É verdade, mas nenhuma de nós sabia o que se passava no íntimo da outra. E nem tinha coragem de perguntar. Nem sabia por onde começar.

Mary Blue mergulhou em si própria, fez ar circunspecto e emergiu:

— Mas quem sabe o que se passa sequer no seu próprio íntimo? Quem tem coragem de perguntar isso a si próprio? Quem tem coragem de esperar pela resposta?

— É mesmo. Infinitas vezes me perguntei: “De onde venho? Para onde vou? Qual meu papel nesse mundo?” e nada de resposta. Aliás, incomodava-me aguardar por essa resposta sob o risco delas me dizerem que pouco importava de onde eu vinha e para onde eu ia, pois eu era apenas um detalhe do todo. Um detalhe que sozinho pouco valia. Mas eu não podia admitir que talvez fosse essa a resposta.

— E começou a brigar com você mesma como se a resposta fosse realmente essa.

— Como você sabe? Aliás, você parece tão sabida!

— Sou nada. Apenas passei e passo pelo mesmo que você, disse Mary Blue. Passei e passo por esse questionamento todos os dias. Aliás, acho que é ele que me mantém viva. Diga-se, de passagem, viva a dúvida!

— Ah, sei lá. Eu gosto mesmo é de ter respostas.

— Todo mundo gosta. Mas muitas vezes, se não sempre, a diversão maior está em buscá-las que em encontrá-las. Lembra quando passamos pela Grécia?

— Meu Deus, faz tanto tempo?

— Faz mesmo. Mas não importa o tempo. O que importa é que Demócrito estava às voltas com o pensamento de em quantas vezes ou até que tamanho poderia ser dividida a matéria.

— É mesmo… E chegou à idéia de que em algum momento ela não poderia mais ser dividida e a esse pedacinho minúsculo chamou de átomo.

— E você viu quanta coisa aconteceu de lá para cá, com base nessa idéia? Quantas áreas do saber, quantos novos materiais, quantas leis da química, física e outras áreas se desenvolveram? O mundo hoje é outro. Totalmente diferente. E sabe por quê? Porque muita gente se divertiu e se diverte procurando respostas.

— E encontrando também. Senão, desanima.

— Você não deixa de ter razão, mas eu ainda me divirto mais com a busca.

— Eu acho que cada um tem um modo de ver as coisas e as preferências que lhe são próprias.

— Você tem razão, Red Rose. Entender isso é mais uma forma de sabedoria. Mas sabe para o que eu ainda não consegui encontrar resposta?

— O quê?

— Que nós íamos nos encontrar eu sabia. Era inevitável. Está na lei. Mas e agora? O que acontece depois desse encontro?

E assim termina a história de Red Rose e Mary Blue, duas retas que se encontraram no infinito. Ou seria só o começo? Iria Mary Blue procurar a resposta à pergunta “O que acontece a duas retas paralelas depois que elas se encontram no infinito”?

08 e 09 de setembro de 2009.

quinta-feira, 17.setembro.2009 Posted by | Outros contos ou crônicas | 1 Comentário

Beija-Flor e Arapuá

A arapuá é uma abelha sem ferrão, mas nem por isso deixa de ser incômoda para quem quer alimentar os beija-flores com bebedouros. Elas infestam o bebedouro e algumas vezes os pássaros o rodeiam mas desistem. As recomendações que já vi de se colocarem recipientes com água açucarada próximos não surtiram o efeito que eu esperava. Algumas poucas abelhas iam para esses recipientes e várias cercavam o bebedouro. Cheguei a colocar DSC00506 a mesma solução que utilizava para os pássaros e isso também foi de pouca eficiência. Influenciado pela idéia do cone sobre o bebedouro para repelir formigas com óleo e que é visto na foto ao lado, tive uma outra que pus em prática e parece ter sido eficiente. Essa não é uma conclusão científica, uma vez que a amostragem, o número de repetições e a metodologia não atendem a parâmetros científicos e estatisticos. Mas como as abelhas que aqui surgiram não entendem nada de ciência, está funcionando e vou passar as informações para serem testadas por mais gente.

DSC00509

Primeiramente, esteja munido de um ou mais cotonetes (em geral, um basta para uma única operação), vaselina líquida e um recipiente auxiliar (usei uma xícara). O recipiente auxiliar é para evitar de colocar o cotonete dentro do frasco de vaselina e sujá-lo. Coloque uma pequena quantidade de vaselina no recipiente auxiliar, suficiente para uma operação. Depois de devidamente lavado o bebedouro, umedeça o cotonete na vaselina do recipiente auxiliar e passe nas pétalas das flores do bebedouro. Uma umedecida de cotonete é a quantidade adequDSC00515ada para uma flor completa, inclusive para os estames. Após umedecer a flor, Faça o mesmo para os respectivos estames, sem molhar novamente o cotonete, a fim de evitar excesso no centro da flor, o que poderá ser desagradável para os beija-flores. Repita a operação para as demais flores.  Para as pétalas, oriente-se pela foto ao lado e para os estames para a foto abaixo. Tenha cuidado para não passar o cotonete no centro da flor, por onde o beija-flor acessa o líquido.DSC00516

 

Aproveitando, vamos falar das formigas, para as quais já existem procedimentos bem conhecidos, inclusive nas embalagens dos bebedouros. A alternativa que vem na embalagem é encher o cone sobre o bebedouro de óleo. Eu prefiro passar graxa no arame e prego que eu uso para dependurar o bebedouro, conforme se vê na foto abaixo. Nada contra o método do cone, para o qual ele foi feito, por sinal, mas com a graxa, na hora da manutenção, basta retirar o bebedourDSC00518o do arame. No uso do óeo, o inconveniente é o fato de ser um item a mais para fazer manutenção e mais um resíduo que que se tem que descartar (o óleo sujo).

Agora um bichinho que eu não consegui dar jeito, foi a cambacica. É um pássaro pequeno, que parece uma miniatura de bem-te-vi e possui outros nomes regionais como caga-sebo e  sebinho. Abaixo, vê-se a cambacica, em foto de Flávio Cruvinel Brandão. A página de onde foi baixada essa foto possui mais algumas informações sobre esse belo pássaro. Ele não chega a causar grandes transtornos. Apenas consome um pouco do líquido e aumenta a despesa. Mas até vale a pena, pela sua beleza. Veja-o em Página da Cambacica, de Flávio Cruvinel Brandão.

sebinhoOutra coisa que me motivou buscar solução para as abelhas foi o fato de que o potinho que eu colocava com água e açúcar para elas estava se transformando numa fonte de extermínio, pois elas se afogavam. Coloquei pequenas rodelas de rolha, para servir de bóia, mas mesmo assim algumas morriam. Então parti para a solução acima e para não deixá-las sem qualquer fonte de açúcar, deixei os potinhos, mas ao invés de líquido fiz um melaço de açúcar e água apenas para umedecer.

domingo, 22.fevereiro.2009 Posted by | Dicas | , , , , , , | 16 Comentários

O Velho Nestor

Sem pressa, os primeiros raios de sol começaram a devorar a escuridão. Lentamente, um novo dia começava a amanhecer. A grama ainda estava molhada da chuva que caíra durante a noite.

Nestor olhou à sua volta, preguiçosamente. Trazia o corpo molhado. Mais uma noite ao relento. Mais uma noite pouco dormida, escutando os pequenos sons, que se destacavam no silêncio dominante, como uma sinfonia desconexa. Notou um pouco adiante, o recipiente familiar com indícios de que houvera alimento ali, que o manteria vivo por mais um dia. Muitos apiedavam-se dele. Outros achavam aquilo natural. Ele não pensava no assunto. Nem sabia o que era pensar. Apenas vivia.

Olhou para um lado, para o outro. Ninguém. Examinou sua aparência sem nenhuma crítica e deitou a cabeça sobre uma pedra adjacente. Ia ficar mais um pouco ali, quieto. Levantar-se já para quê? O vazio de mais um dia preencheria suas infindáveis horas ociosas. Serenamente, suas pálpebras foram se fechando e ele adormeceu novamente. E sonhou. Pois é acreditem. Nestor sonhou.

Via-se num espaço muito amplo, bonito, com extenso gramado, ao lado de um grande lago, num tempo passado. Seria sua infância? Tinha muita energia, corria com muito vigor. Todos o tratavam com muito carinho. Sorriam para ele, pegavam-no ao colo, afagavam e, a seguir, colocavam-no no chão, para que continuasse a correr, a brincar. Que alegria! De repente, viu ao longe uma toalha estendida na relva, com várias guloseimas cuidadosamente arrumadas sobre ela. As pessoas que estavam por perto conversavam distraidamente, apanhando o restante do material do piquenique. Na sua inocência e incontinência infantis, Nestor correu para cima daquele mundo maravilhoso e foi uma festa! Enquanto não foi notado. Mas alguém percebeu e deu o alerta. Foi um Deus nos acuda. De repente, todo mundo veio para cima de Nestor, com ares de poucos amigos e ele tentou correr, mas suas pernas de chumbo prendiam-no ao solo.

No esforço desesperado de escapar, Nestor acordou assustado. Tentou por-se de pé num salto, mas seu corpo velho, com músculos pouco vigorosos e algumas artrites impiedosas, pediu para que ele tivesse calma O coração fraco batia forte. Levantou-se com dificuldade, caminhou penosamente e observou a rua. Alguns automóveis e ônibus começavam a passar com seus ocupantes ainda sisudos, pela sonolência mal resolvida. Pessoas caminhavam apressadas, com seus pães e leite, ou sem eles. É, o dia começava a pulsar. Mas Nestor não estava interessado nesse pulso. Viu um jornal caído ao chão, o que também não lhe causou nenhum interesse. No passado, tê-lo-ia devorado de ponta a ponta, para irritação de muita gente. Agora, só a indiferença.

O pior de tudo, era a inconsciência da situação. Ou seria um alento, não saber da simplicidade e inconsistência de sua vida?

Passo a passo, cada um vindo estudadamente após o outro, Nestor voltou para seu cantinho. Alguém tinha até escrito uma tabuleta: “Cantinho do nestor”. Sentou-se e ficou com aquele olhar de quem analisa profundamente o nada. Aos poucos foi se acomodando de novo ao solo. E não é que o sono estava vindo outra vez! Que droga! De uns muitos anos para cá, parece que só isso preenchia sua vida: sono, sono, sono. Que falta de perspectiva! Perspectiva? O que é isso? Que importa?

Antes que dormisse de novo, alguém chamou:

— Nestor, Nestor.

Levantou rapidamente a cabeça. Ainda tinha energia pelo menos para erguê-la com agilidade. Pôs-se de pé e caminhou lento, mas cheio de alegria, abanando o rabo para seu dono.

— Ô, Nestor, meu velho. Dormiu fora da casinha de novo, não é?

Ainda havia momentos de muita felicidade na vida daquele velho cão, de quem a família tolerava todas as caduquices, em respeito a sua idade.

3o lugar no Festival Cidadania e Arte da Embrapa, 2005. 

sábado, 21.fevereiro.2009 Posted by | Outros contos ou crônicas, Uncategorized | 2 Comentários

O Pássaro de Prata

O Pássaro de Prata (1)

O que você vai ler, a seguir, aconteceu. Talvez não com essas pessoas. Talvez não nesse lugar. Talvez não dessa forma. Mas aconteceu.

Gradualmente mas ininterruptamente, suave mas peremptoriamente, a luz ia abocanhando a escuridão e um novo dia começava a nascer. Aifos tinha os olhos ressequidos da noite insone. Mais uma, da longa série que começara cerca de seis meses antes. Vira, outra vez, vultos andando pela ilha, em atitude de quem examina algo desconhecido. Não sabia o que era aquilo. Portavam nas mãos pequenos objetos que emitiam luz em intensidade adequada a suas tarefas localizadas. Objetos estranhos para Aifos e todo seu povo. Seu mundo era bom, com tudo que eles precisavam para alimentar-se, matar sua sede e bom até para andar. Os mais velhos conheciam-no todo, pois em uma vida era possível visitar todos seus recantos e ainda voltar para casa a fim de narrar suas experiências, de forma que o conhecimento era de domínio geral sobre todas as coisas que ali haviam. O mundo era bom. As pessoas é que careciam de maior maturidade social, pois em vários pontos ainda se encontravam no primitivismo das atitudes. A liderança, por exemplo, nem sempre era exercida por méritos maiores, mas sim pela força. Mas era o mundo que se tinha para viver. Não havia outros. Ao redor dele, só água. Não sabiam que a isso dava-se o nome de ilha. E nem podiam, pois não havia continente para eles ou a ilha era o seu continente. Os nomes são relativos. Além deles, apenas um pequeno ponto lá distante, no meio da água imensa. Uma pedra. Poderia ser outra ilha. Poderia ser maior. Mas a idéia de um outro mundo ou de um outro povo nunca fez parte de suas reflexões, que eram invariavelmente relativas às coisas do dia-a-dia, do seu chão, do seu céu, da sua água (e quanta água!). tinham suas crenças, é claro. Mas calcadas em suas experiências limitadas. E qual povo não é assim? Apenas mudam os limites.

— Aifos, meu filho, o que o incomoda?

O moço não havia notado que a manhã já chegara ao horário em que todos começavam a levantar-se e também não percebeu a aproximação do pai.

— Pai, tem alguma coisa estranha acontecendo.

— Que tipo de coisa?

— Tenho visto vultos andando pela noite, carregando pedaços de pau que clareiam, pegando pedaços de coisas do chão, das plantas, bichinhos e outras coisas e colocando em pequenos embornais transparentes. Não sei quem são, de onde vêm e para onde vão. Não chego perto porque não sei o que querem e o que podem me fazer.

— É estranho, mesmo, filho. De qual partilha (2) serão? E por que fariam isso de noite? E o que estão pegando.

Ficaram calados. O pai estava mais preocupado com a cabeça do filho do que com os fatos por ele narrados, pois julgava serem criações suas. O filho começava a se perguntar: “E se não forem do nosso mundo? Mas de que mundo seriam, então?”

— Vamos tomar café (3), filho. Depois a gente fala com o estatutor. Ele pode ter mais informação e falar com os outros estatutores, para evitarmos confusão futura.

Na verdade, o pai não falaria com ninguém. Não queria expor o filho e a família a situações embaraçosas. Disse aquilo apenas para tranqüilizar Aifos.

O dia transcorrera normalmente, a não ser pelo sono absurdo que aocmpanhava Aifos ao longo de suas tarefas. Na ilha, cada um tinha seu papel que não podia ser deixado para outro. Portanto, hora de dormir era à noite. Ele estava do outro lado do monte, tentando caçar um coelho quando sentiu bater uma claridade na mata. Olhou para cima e viu uma luz que o ofuscou. Era o reflexo do sol que batia em algo flutuante e iluminava a mata. O objeto foi descendo e assentou-se numa clareira. Aifos não sabia o que era coração, mas o seu estava quase a lhe sair pela boca. Aquilo era estonteante, deslumbrante e ele estava paralisado, atônito, quase catatônico. Depois de assentado, de dentro do objeto e através de uma porta que se abriu suavemente, começaram a sair pessoas que não eram muito diferentes dele, a não ser pelas roupas, quantidade de pelos, comprimento de cabelos e outros pequenos detalhes. Mas todos com dois olhos, um nariz, uma boca, dois braços, duas pernas, duas orelhas e assim por diante. Aifos pensou no que diria a seu povo. Dizer o quê se nem ele tinha certeza do que estava vendo? Seria o sono? Saindo ligeiramente do torpor, mexeu um pé e provocou um estalido que chamou a atenção dos estranhos. Deveria correr? Não conseguiria. Ficar parado? E se isso significasse a morte? E se tudo fosse apenas um sonho? Que tal acordar? Mas não sabia se era sonho. Com os sinais elétricos trombando em todas suas esquinas neurais da cabeça, ele não notou a aproximação pelo lado, de um dos seres.

— Zap ed oãssim me somatse, ogima ôla.

— Que, que, quem sã, são vocês?

— Racinumoc son someredop ogol. Ahli an somartnocne euq socifárg sianis snugla ed oditnes od somaifnocsed éta e sodad odnehloc somatse sam, augníl aus somalaf oãn adnia etnemzilefni.

Aifos não emitiu mais nenhuma palavra. Aquilo não podia estar acontecendo. O ser sorriu e isso Aifos entendeu. Talvez pelo imprevisto de ter encontrado um nativo e com receio de que isso pudesse causar algum alarde, a equipe dos seres voltou rapidamente para sua nave e retirou-se (espaçonave, aeronave, que importa se Aifos não sabe o que é nave?). A subida, tanto quanto havia sido a descida, foi outra experiência assustadora para ele, devido ao ar quente saído dos propulsores verticais e a conseqüente poeira levantada para todos os lados.

Naquela noite, ele não dormiu um segundo. Nem na próxima e na que se seguiu a essa. Mas no quarto dia, após a refeição do meio dia, ele encostou-se para  descansar e dormiu dois dias e duas noites ininterruptas. O assombro era geral. Isso nunca havia acontecido antes. Tentavam, inutilmente, despertá-lo, mas nada. Era um sono agitado, com delírios, palavras ininteligíveis, frases desconexas, sudorese geral. Então Aifos acordou. Estava só na casa, deitado na cama, onde o colocaram no primeiro dia. Ouviu os pássaros cantando sem muito alarde e adivinhou que era final de tarde. Logo os homens voltariam de seus afazeres no campo, nas oficinas. Sua mãe, que voltava da fonte de água doce, entrou e viu-o sentado.

— Meu filho, o que aconteceu com você esses dias todos? Como você está?

— Estou bem, mamãe. Eu andava com dificuldade para dormir e quando apaguei foi de uma vez.

— O anátomo (4) veio vê-lo, mas não descobriu nada. Mandou lhe dar uns chás, mas como fazer você engolir dormindo?

— Fique tranqüila, mamãe. Estou bem.

Aifos foi para o quintal, olhou para o mundo (seu mundo). Lembrou-se do ocorrido dias atrás e ainda tinha dúvidas sobre a realidade dos fatos. Principalmente agora que ficara fora do ar por dois dias. Tudo assemelhava-se mais a uma memória quimérica distante, ou a um sonho, que ele não sabia se era bom ou ruim. A idéia de um outro mundo era maravilhosa, mas tirava-o do seu sossego confortável. Na verdade, ele não pensava exatamente em outro mundo. Esse era um conceito abstrato dentro da bagagem cultural do seu povo. Ele simplesmente pensava em algo diferente do que conhecia e não sabia o que era. Pior: ainda não estava certo se era real ou se fazia parte do delírio dos dois dias. Resolveu caminhar pelas redondezas, espairecer. Enquanto o fazia, apanhou uma fruta numa árvore próxima e foi matando a pouca fome que estava sentindo. Deveria ser maior, mas seu cérebro estava anestesiando o estômago. A fruta deu-lhe a sensação agradável de uma necessidade atendida. Observou tudo com olhos diferentes. Todas as coisas sempre estiveram ali e ele não percebera, mas agora notava, prestava atenção, apalpava, cheirava. Vivia. Quando voltou para casa, uma hora depois, foi recebido com alegria e alívio pelo pai que o abraçou fortemente.

Dois dias passaram-se sem qualquer novidade. Aifos quase começara a esquecer o que vira. Começava a achar que tinha sido realmente um delírio. Somente depois desse tempo resolveu voltar ao local que poderia ter sido o do encontro. Não havia nada de muito diferente. A chuva freqüente fazia a grama crescer rapidamente e esconder vestígios. Chegou mais perto da clareira e só aí ficou intrigado, mas sem certeza. Havia algumas depressões do que poderia ter sido o apoio da nave. Mas ele não tinha visão técnica ou vivência tecnológica para esse tipo de avaliação. Olhou mais atentamente e, mesmo sem a tal visão especializada, notou a regularidade da distribuição das depressões. Foi quando notou um bastonete caído. Chegou-se perto e viu que não era nada conhecido no seu mundo. Foi quando teve certeza de que não vivera um sonho. Seu coração começou a bater acelerado. De novo a incerteza de procurar ou não alguém para ajudá-lo a entender aquelas coisas. Mas que pensariam dele? Pelo menos agora tinha algo que provaria que aquilo tudo não era fruto de uma mente desequilibrada. E o melhor era poder provar isso para ele mesmo.

— Amigo!

Aifos estremeceu porque reconheceu o timbre de voz e sabia com que se depararia na hora em que se voltasse. Virou-se e lá estava ele. Um ser semelhante ao que vira no outro dia. De fato, achava que era o mesmo. Será que ele fala como nós?

— Aid ortuo od otsus olep eplucsed.

Não, não falava. Mas já descobrira uma palavra e, pelo jeito amistoso de suas expressões, sabia e desejava manifestar o significado.

O estranho apontou para a pedra que ficava distante no meio das águas e falou outro tanto de coisas que Aifos não entendia. E gesticulava para o ar, traçando formas invisíveis, desenhando rotas, apontava para o céu, para as águas. Nada que ele pudesse decifrar, mas entendia que ele queria explicar alguma coisa. Apontou de novo para cima e disse:

— Céu.

— Céu, repetiu Aifos.

Era o primeiro diálogo. Grande avanço por vir, que começava numa minúscula semente. Como tudo.

Apontou para a pedra lá distante e falou:

— Otatera.

Como um papagaio, Aifos repetiu a palavra, dessa vez sem a mínima idéia do que significava. Tímida e intuitivamente, apontou para si próprio e disse:

— Aifos.

O estranho entendeu ou achou que entendeu e, fazendo o mesmo gesto para si:

— Apopeu.

Fantástico! Primeiro diálogo e já com identificação e boa vontade. Parece até que nascia ali a OIU – Organização das Ilhas Unidas. O coração de Aifos dava pulos, mas agora não era de medo. Era de alegria. Havia algo, alguém, além. Começava a entender que a pedra era o lugar de onde Apopeu vinha. Seria outro mundo? Ou mundo era só o dele mesmo e a pedra seria um lugar especial, onde viviam seres especiais que podiam deslocar-se no ar como os pássaros? Que conhecimento novo formidável! E porque era bom, Aifos queria dividi-lo com os seus. Mas estaria na hora? Bem, havia o bastonete. Porém, quem não quer acreditar duvida até da pedra que lhe dilacera a testa. “Otatera”, pensou.

Sorrindo, Apopeu falou:

— Amigo, ieratlov ue. Vendo o bastonete no chão, pegou-o e passou-o a Aifos. Anretnal ahnim moc euqif. E afastou-se para dentro da mata.

Os meses seguiram-se sem que Aifos tomasse a decisão de contar não somente os primeiros fatos a seu povo, mas também os que se seguiram e começaram a constituir-se quase uma rotina. As visitas foram mais freqüentes. Era sempre Apopeu o contato mais imediato, embora tenha apresentado outros. A comunicação avançara e ele já conseguia descrever objetos, tecnologias e metodologias. Aos poucos associava-lhes nomes: lâmpadas, telefone, fogão, lanterna, geladeira, etc. E um belo dia, quando não cabiam mais surpresas, convidou Aifos a passear na nave. Ele relutou, mas sem muita convicção, pois isso já fazia parte de seus desejos mais íntimos. Ademais, não sentia mais qualquer receio em relação ao povo de Apopeu, que via até como superiores destinados a protegê-los. Talvez fossem, inclusive, os deuses de que seu povo tanto falava e a quem tanto se apegava. Acabou por aceitar e entrou naquele objeto estranho, mas com aparência interior muito agradável a seus olhos. Era como uma criança diante de um brinquedo muito atraente cuja utilidade ainda ignora.

A porta fechou-se, os motores, pouco depois foram ligados e uma leve vibração fez-se sentir. Ela foi aumentando à medida que o zumbido que ouviam também se ampliava e começaram a subir, subir e subir.

Aifos viu seu mundo ficar pequeno à medida que subiam. Depois a nave afastou um pouco da ilha e, maravilhado e incrédulo, ele foi vendo que a pedra no meio da água era maior do que pensava. Mais distante, muito mais distante viu um vulto escuro que parecia outra terra enorme. “Outra terra, Otatera”, pensou. Agora entendeu. Mas terra de quem? Dos deuses. A nave fez uma rápida volta sobre a ilha de Apopeu e começou a retornar. Após deixá-lo em terra, recomendou-lhe:

— Aifos, tudo o que você tem visto não tem sido à toa. Você é o eleito, o mensageiro de seu povo. A você cabe a missão de mostrar-lhes que uma nova era está chegando. Que trazemos avanços para sua vida, não só material, mas também algo maior.

A nave afastou-se e Aifos ficou mais, muito mais aturdido que no primeiro contato na floresta. Eleito, mensageiro, missão, nova era. Essas palavras ecoavam, reverberavam, ribombavam dentro de sua cabeça. Tinha motivo para ficar não mais só três dias, porém um ano, sem dormir. Era muito para uma pessoa só. Não se sentia nada diferente, menos ainda melhor, para ter que arcar com aquela responsabilidade. Mas na verdade, havia sido escolhido pelos estranhos. Eles tinham métodos que permitiam selecioná-lo. Talvez não numa busca ostensiva, mas o mais apto do grupo que avaliaram em segredo. Ele não sabia disso e nem chegou a pensar nessa hipótese.

Duas semanas passaram-se sem que Aifos conseguisse imaginar um plano amplo para sua tarefa. Até que decidiu começar por seus pais. Narrou-lhes tudo, desde as primeiras observações de pessoas vasculhando a ilha, até o primeiro encontro e culminou com o contato mais recente. Fazia um esforço enorme para fazer-se entender. Buscava palavras, tentava exemplificar, exaltava-se. Estava excitadíssimo, o que foi tomado pelos pais como estado de alucinação, desequilíbrio. Fingiam que acreditavam, concordavam com algumas de suas colocações. Procuravam não contrariá-lo e ele acabou por notar essa atitude. Abreviou o fim da conversa, pediu licença e foi para o terreno ver o luar. Teve, com seus pais, um modelo reduzido da dificuldade que encontraria pela frente.

A cada três meses, aproximadamente, a comunidade reunia-se para discutirem seus problemas e buscarem soluções em conjunto. A próxima reunião seria na semana seguinte. Aifos decidiu que exporia os fatos a todos. Teria que ser mais convincente do que fora com os pais. Estes estavam preocupados que as pessoas soubessem que seu filho enfrentava problemas de ordem mental ou emocional. Mas ele não lhes falara da sua idéia para a reunião.

No dia marcado, o galpão de toras e sapés estava lotado. Era rústico, mas muito forte e à prova de chuva. As portas eram apenas aberturas não muito amplas, nem pequenas, sem folhas para fechá-las, pois não havia o que roubar e a cobiça não fazia parte dos defeitos daquelas pessoas.  Suas expectativas de posse eram apenas relativas a suas necessidades básicas do dia-a-dia. Era uma espécie de teatro de arena com arquibancadas cercando um círculo no qual colocava-se o estatutor e a pessoa ou as pessoas que expunham suas dúvidas ou demandas.

Aifos esperou que todos falassem, primeiramente em respeito, segundo porque o coração estava quase saindo pela boca de tanto medo pelo que estava por vir. Quando o estatutor perguntou pela última vez se mais alguém queria falar, ele levantou a mão e foi chamado ao centro.

— Amigos, não trago nenhum problema e nenhum pedido. Quero apenas contar umas coisas que aconteceram comigo e que vão ser muito importantes para todos nós.

E começou a narrar como fizera para os pais, mas procurou usar simbolismos, desenhos riscados no chão, apelou para objetos que trouxera de casa e que pudessem auxiliá-lo na explanação. Por algum tempo, o silêncio foi total, misturado com um certo receio ou superstição. Mas quando chegou no primeiro contato, em que vira a nave pela primeira vez, a platéia começou a ficar incrédula. O silêncio foi substituído por resmungos, comentários paralelos e transformando-se em ruído. Aifos, agora, tinha dificuldade em falar, mas não desistia porque julgava aquilo importante. Quando chegou, porém, à sua viagem com os estranhos, a turba enfureceu-se:

— Anton, o que está acontecendo com seu filho? Perdeu o respeito por essa reunião, acha que somos idiotas ou perdeu o juízo? Tire-o daí antes que percamos a paciência e o coloquemos em seu devido lugar.

Aifos não esperou a intervenção do pai. Retirou-se da arena e foi embora consternado. Só quando estava longe lembrou da lanterna. “Como fui esquecer de levar a lanterna? Mas será que teria adiantado?”

Os comentários sobre o ocorrido na reunião correram de boca em boca e eram o assunto do momento. Até que chegaram aos ouvidos de Andreus, que não estava na assembléia daquela dia.

— Esperem aí. Eu vi o dia em que desceu um pássaro de prata que pegou alguém e foi embora. Depois de algumas horas, vi algo se aproximando, vindo do céu, era ele de novo, trazendo alguém.

A informação coincidia com a narrativa de Aifos e o assunto passou a ser considerado sob outro prisma. Ele passou a ser respeitado. Não entendia porquê. De novo, alguém via algo de especial nele, diferentemente de sua auto-avaliação. Começaram a bombardeá-lo com perguntas, mas ele só podia contar o que vira, os fatos, os objetos, os seres. Não possuía nenhuma opinião formada sobre aquilo tudo. E não conseguia transmitir as sensações que tivera naqueles encontros, mas apenas o que era palpável.

Observando toda aquela situação meio fora de cena, Trinus, o intelectual da comunidade, começava a construir hipóteses a respeito das ocorrências, da origem dos seres comunicantes e do destino daquele povo. Primeiro, não gostava de que alguém estivesse em destaque maior que ele. Segundo, porque, diferentemente da maioria, era ambicioso em termos de status e enxergava na situação uma possibilidade de ascenção maior, no respeito de seus concidadãos (ou compartilhâneos). E foi a partir da simples observação atenta de tudo o que o Aifos falara e do clima reinante, associados à sua grande criatividade, que Trinus elaborou uma teoria mirabolante da origem de seu povo e do seu futuro, agora que os deuses haviam se manifestado. Conclamou um reunião extraordinária da comunidade, onde apresentou suas idéias, nas quais ele se deixava entrever, subrepticiamente, como um elemento imprescindível na continuação do contato com os deuses. Aos poucos, deu vulto a essa idéia e foi apagando a figura de Aifos. Este não fazia questão de destaque, mas percebia que Trinus não estava agindo fiel a nada, a não ser à sua própria criação, complexa mas não condizente com a realidade.

— Trinus, não queria contrariar você, mas o que está dizendo é muito diferente do que eu vi. Aliás, nada me foi mostrado ainda. Apenas conheci aqueles seres.

— Deuses.

— Você é quem diz. Eles não falaram isso.

— Nem falariam. Outra coisa. Esse negócio de você ser o eleito, deve referir-se apenas aos fatos iniciais. Como você faria isso se não é capaz de interpretar os fatos, de criar modelos, teorias? Só quem é capaz disso é que está à altura de tamanha missão.

Aifos ficou embaraçado com a argumentação e pensou se não seria melhor retirar-se de cena. Seria mais cômodo, pelo menos. Cuidar da sua vidinha e não do que poderia ser o futuro de todo um povo. E Trinus estava morrendo de vontade de fazer isso. Por que não deixar para ele?

— Porque ele não tem propósitos, foi o que lhe disse Apopeu, no novo encontro que tiveram. A não ser pensar só nele mesmo.

— Mas o povo acredita mais no que ele diz do que em mim. Eu lhes dei só fatos, sem interpretação. Ele lhes deu regras.

— Que o levam a ele, não a um futuro melhor. Você não pode conformar-se com isso. Não pode se acomodar. Senão, será igual a ele. Pensando apenas no próprio conforto.

Aquilo atingia Aifos como um raio. O conflito, ao invés de diluir-se, ganhava volume dentro dele. O “eu” e o “nós” digladiando-se, tentando mostrar quem é mais importante.

— Pense bem, no que deseja para si e para seu povo.

Ele não sabia o que desejar. Ou melhor, sabia. Queria sossego para os dois. O que não sabia era qual o caminho para conseguir isso. O que sabia menos ainda, embora desconfiasse, é que entrara num caminho irreversível, no qual não haveria mais espaço para o sossego. O que também não sabia é que as mudanças ocorrem somente a custo de energia aplicada, alteração de hábitos, substituição de idéias, troca do velho pelo novo. Enfim, fuga deliberada da zona de conforto.

— Pense, reflita e decida. Nós estaremos do seu lado. Não estaremos nunca do lado dele, pelo menos enquanto ele pensar e agir dessa forma.

Aifos estava em dúvida se tentava dialogar com Trinus para convencê-lo de seu erro ou se alertava o povo para essa situação. Se Apopeu estivesse certo, não haveria como convencer Trinus, pois ele não estava movido pela lógica, mas pelo próprio interesse. Achou que o melhor seria abordar os demais nativos, mas percebeu que a teoria elaborada por Trinus estava completamente impregnada pelos detalhes cotidianos bem como as crenças seculares da tribo e, portanto, mais assimiláveis. Estavam mais distantes do medo de enfrentar o diferente, o transcendental. Mesmo assim, insistiu e foi rechaçado. Trinus pouco precisou fazer ou induzir para que o povo considerasse Aifos uma ameaça à existência pacífica da comunidade. Seus olhares para com ele eram sombrios alguns, hostis outros.

— Siga esses homens, Aifos.

O estatutor estava em seu caminho quando ele voltava para casa.

— Por que eles estão armados? Para onde iremos.

— Simplesmente, siga-os.

22 a 27 de outubro de 2005.

 


(1) Conto baseado na alegoria ilustrativa da diferença entre religiosidade e religião, apresentada em “Carl Gustav Jung e os Fenômenos Psíquicos”, de Carlos Antônio Fragoso Guimarães.

(2) A ilha era dividida politicamente em 12 partes que chamavam partilhas, cada qual seu com líder a quem chamavam de estatutor.

(3) Algumas equivalências de expressões e mesmo de hábitos são feitas nos diálogos.

 (4) Pessoa conhecedora dos assuntos ligados à saúde, na ilha.

domingo, 28.dezembro.2008 Posted by | Outros contos ou crônicas | Deixe um comentário

Distância

O espaço é um limitante tímido perante as fortes relações. Ele só consegue separar a percepção dos cinco sentidos, igualmente limitados. Nem sequer arranha a ligação estabelecida por aqueles que fortemente se amam. Por isso, não devemos nos atordoar perante a saudade dos queridos que estão em terras distantes, nem nos desesperar ante a dor, em geral dilacerante, que nos causa a ausência daqueles que hoje se abrigam na invisibilidade. É difícil? Sim. Mas não estamos aqui para viver somente as coisas fáceis. Aquelas que nos acomodam onde estamos e de lá não nos tiram. Onde buscar resposta? Em algo maior que nós próprios, de cuja essência tenhamos saído, e que pode nos transformar em rochas, não de sentimentos, mas de enfrentamento às adversidades. Doloridos, sim. Vencidos, não. Esperançosos, com certeza.

domingo, 30.novembro.2008 Posted by | Outros contos ou crônicas | 1 Comentário

Rancor

“Guardar rancor contra alguém é como tomar veneno e esperar que esse alguém morra.”

William Shakespeare

domingo, 23.novembro.2008 Posted by | Pensamentos | Deixe um comentário

Mistérios do Céu

“Quando quiseres indagar a respeito dos mistérios do Céu, sonda o segredo divino que palpita na flor.”

Mariano José Pereira da Fonseca.

domingo, 23.novembro.2008 Posted by | Pensamentos | Deixe um comentário

Poema em Linha Reta

Gosto muito desse poema do Fernando Pessoa. Um colega da General Motors me falou dele (já se vão cerca de 25 anos!!) e, por algum motivo que não lembro, me veio à memória essa semana. Ele (o Fernando) o escreveu com o heteronônimo Álvaro Campos. Fernando Pessoa usou vários heterônimos. O mais profícuo deles foi o de Álvaro Campos. Caso queiram também ouvi-lo numa magnífica interpretação de Paulo Autran, acessem o endereço abaixo. Bom proveito.
http://www.youtube.com/watch?v=SJGapSGp_lc

Ao final, uma breve visão da história de Fernando Pessoa.

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Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Uma visão breve sobre a vida e a obra do maior poeta da língua portuguesa:
– 1888: Nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em Lisboa.
– 1893: Perde o pai.
– 1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul.
– 1904: Recebe o Prêmio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
– 1905: Regressa sozinho a Lisboa.
– 1912: Estréia na Revista Águia.
– 1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu.
– 1918/1921: Publicação dos English Poems.
– 1925: Morre a mãe do poeta.
– 1934: Publica Mensagem.
– 1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa.

Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro “Fernando Pessoa – Obra Poética”, Cia. José Aguilar Editora – Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.

domingo, 23.novembro.2008 Posted by | Literatura | Deixe um comentário